Um casal de pessoas brancas foi filmado imitando macacos na roda de samba Pé de Teresa, na Praça Tiradentes, região central do Rio de Janeiro, na noite da última sexta-feira (19). A gravação foi feita pela jornalista Jackeline Oliveira (esquerda na foto em destaque), que registrou ocorrência, junto com a produção do evento e a presidente da Comissão de Combate ao Racismo da Câmara Municipal, Monica Cunha, na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi).
A Decradi confirmou em nota que o caso foi registrado, e que “testemunhas estão sendo ouvidas e diligências estão em andamento para identificar e intimar os autores para prestarem esclarecimentos na delegacia”. Como a investigação está em andamento, não serão concedidas entrevistas, informou a Secretaria de Estado de Polícia Civil.
Jackeline Oliveira expressou toda a sua indignação pelo que presenciou na roda de samba, da qual participavam cerca de 60 pessoas. Para ela, não foi um deboche ou brincadeira o que aconteceu. “Eles estavam fazendo gestos para diminuir as pessoas pretas de modo geral. Eram atos discriminatórios”. Por isso, a primeira coisa que ela falou na delegacia é que aquilo não era uma dança, uma brincadeira. Eram atos discriminatórios para diminuir as pessoas pretas que estavam ali, a cultura das pessoas pretas”, disse.
Acrescentou ter ficado envergonhada, constrangida. “Quando o racismo atravessa a gente enquanto corpo preto, ainda mais quando ele não é direto, porque a gente pode responder, discutir, brigar, chamar a polícia, parte para cima, quando é necessário. Mas quando o racismo não é direto, a gente fica quase inerte, como eu e quase 60 pessoas ficamos ali, vendo aquelas duas pessoas”.
Jackeline decidiu gravar a cena para ter provas. Ela postou nas redes sociais e não esperava a reação tão grande. “Isso não pode ser só uma postagem. Tem que virar denúncia. Esses caras têm que pegar pelo que fizeram. Essa denúncia tem que ser uma forma de inibir outras pessoas de cometerem crime de racismo”, decidiu.
A produção do evento postou o vídeo em rede social, classificando a cena de “inaceitável”.
Para Jackeline Oliveira, as pessoas se sentem à vontade para fazer atos semelhantes pela impunidade do Poder Judiciário. “É uma luta para ser aceito como crime de racismo dentro da delegacia quando você vai ser ouvido. Mas, quando chega no Judiciário, o processo para e a pessoa é inocentada. É invalidado todo um sentimento de constrangimento, porque se perde tempo na delegacia. Então, se amanhã chegar ao Tribunal de Justiça, eu quero que essas pessoas sejam condenadas e paguem pelo crime de racismo, que é inafiançável. E não é à toa. Foram 400 anos de escravidão. As pessoas se sentem à vontade para cometer crimes de racismo”.
O racismo é um problema mundial. “Não é problema do Rio de Janeiro e do Brasil. Mas o cara é brasileiro, mora no Rio e não se sentiu nem um pouco constrangido em fazer aquilo. Nâo ficou com medo de fazer. Isso me assusta”, afirmou Jackeline. A partir de que momento as pessoas se sentiram tão confortáveis em infringir a lei em praça pública, com mais de 300 pessoas em volta?, indagou. “O meu sentimento é de indignação. Eu espero que a polícia faça o trabalho dela. Eles (os policiais) têm que investigar e achar essas pessoas, responsabilizar e fazer com que elas paguem pelo que fizeram”.
Racismo
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no dia 18 deste mês, os casos de racismo aumentaram 127,6% no Brasil em 2023, em comparação ao ano anterior, com destaque para os estados do Rio Grande do Sul, Paraná e Rio de Janeiro.
Em entrevista o doutor em ética e filosofia política pela Universidade Federal de São Paulo e professor da Casa do Saber, Douglas Rodrigues Barros, analisou que houve uma certa construção ideológica de que o Brasil seria o paraíso das raças, a chamada democracia racial. “Isso estava ligado a um certo ideário de construção da racialidade brasileira, que seria a civilização do entroncamento das três raças. A grande questão é que esse ideário vai ruindo ao longo do tempo e sob ele a gente vê as marcas da exclusão racial que constitui as nossas cidades e os espaços de administração da vida pública, que são todos marcados pela racialidade. Os espaços de poder são todos marcados pela estrutura racial, pela exclusão”, avalia.
De acordo com o professor da Casa do Saber, momentos de crise, econômica, social, espiritual o racismo ganha mais espaço. “Ele é acionado como um dispositivo no qual a culpa dos males sociais é do racializado e da racializada. Se o Brasil não é um país desenvolvido é porque há muitos negros, há muitos racializados. E sempre a resposta mais fácil para os problemas mais complexos da sociedade é a raça. É você colocar a culpa nos outros. Daí, essas manifestações de ódio racial, como nesse caso específico do casal imitando macacos, que se orienta por essa hecatombe social que se vive hoje, essa regressão social, econômica e espiritual. O racismo cresce quando a crise aumenta”, reforçou.
Douglas Barros considerou “absolutamente correta” a atitude da jornalista Jackeline Oliveira de denunciar o caso à Decradi, tendo em vista que o racismo deve ser combatido todos os dias. “Inclusive porque essa produção de ódio que se faz sob a ideia de que é só uma brincadeira não é algo inédito na nossa história. Eu diria até que as grandes catástrofes do século 20 se iniciaram com a vaga noção de que era só uma brincadeira, uma idiotice. Devemos estar sempre vigilantes para combater esse tipo de ação”, sinalizou o professor.
Movimento
Ao receber o vídeo de Jackeline, o produtor e músico da roda de samba Pé de Teresa, Wanderso Luna, registrou ocorrência conjunta com a jornalista na Decradi para que não se repitam atos como aquele de racismo. “Não tem razão de ser. É só vontade de ser racista”. Wanderso Luna informou que o pessoal do evento está se organizando e pretende fazer campanha para conscientização nas rodas de samba contra o racismo.
Na opinião dele, o primeiro ato seria retirar da Praça Tiradentes a estátua do Imperador Dom Pedro I, “porque o racismo é fruto de mais de 350 anos de escravidão e temos lá o maior símbolo, o imperador, dizendo que as pessoas podem ser racistas”. (Agência Brasil)